Borboleta preta Machado de Assis
A excelência de um livro apresenta-se da mesma forma como foi escrito: aos poucos.
Vejamos um pouco de MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS.
CAP.. XXXI — A BORBOLETA PRETA
10ª edição ed. ática— 1984
No dia seguinte, como eu estivesse a preparar-me para descer, entrou no meu quarto uma borboleta, tão negra como a outra, e muito maior do que ela. Lembrou-me o caso da véspera, e ri-me; entrei logo a pensar na filha de Dona Eusébia, no susto que tivera, e na dignidade que, apesar dele, consegui conservar. A borboleta, depois de esvoaçar muito em torno de mim, pousou-me na testa. Sacudi-a, ela foi enterrada na vidraça; e, porque eu a sacudisse de novo, saí dali e cheguei a parar em cima de um velho retrato de meu pai. Era negra como a noite. O gesto brando com que, uma vez posta, começou a mover as asas, tinha certo ar escarninho, que me aborreceu muito. Dei de ombros, sai do quarto; mas tornando lá, minutos depois, e achando-a ainda no mesmo lugar, senti um repelão dos nervos, lancei a mão de uma toalha, bati-lhe e ela caiu.
Não caiu morta; ainda torcia o corpo e movia as farpinhas da cabeça. Apiedei-me; tomei-a na palma da mão e fui depô-la no peitoril da janela. Era tarde; a infeliz expirou em alguns segundos. Fiquei um pouco aborrecido, incomodado.
— Também por que diabo não era ela azul? Disse comigo.
E esta reflexão, — uma das mais profundas que se tem feito, desde a invenção das borboletas, — me consolou do malefício, e me reconciliou comigo mesmo. Deixei-me estar a contemplar o cadáver, com alguma simpatia, confesso. Imaginei que ela sairá do mato, almoçada e feliz. A manhã era linda. Veio por ali fora, modesta e negra, espairecendo as suas borbolétices, sob a vasta cúpula de um céu azul, que é sempre azul, para todas as asas. Passa pela minha Janela entra e dá comigo. Suponho que nunca teria visto um homem; não sabia, portanto, o que era o homem; descreveu infinitas voltas em torno do meu corpo, e viu que me movia, que tinha olhos, braços, pernas, um ar divino, uma estatura colossal. Então disse consigo: "Este é provavelmente o inventor das borboletas." A ideia subjugou-a, aterrou-a; mas o medo, que também é sugestivo, Insinuou-lhe que o melhor modo de agradar ao seu criador era beijá-lo na testa, e beijou-me na testa. Quando enxotada por mim, foi pousar na vidraça, viu dali o retrato de meu pai, e não é impossível que descobrisse meia verdade, a saber, que estava ali o pai do inventor das borboletas, e voou a pedir-lhe misericórdia.
Pois um golpe de toalha rematou a aventura. Não lhe valeu a imensidade azul, nem a alegria das flores, nem a pompa das folhas verdes, contra uma toalha de rosto, duas palmas de linho cru. Vejam como é bom ser superior às borboletas! Porque, é justo dizê-lo, se ela fosse azul, ou cor de laranja, não teria mais segurança a vida; não era impossível que eu a atravessasse com um alfinete, para recreio dos olhos. Não era. Esta última ideia me devolveu a consolação; uni o dedo grande ao polegar, despedi um piparote e o cadáver caiu no jardim. Era Tempo; aí vinham já as providas formigas... Não, volto à primeira ideia; creio que para ela era melhor ter nascido azul.
A essência do texto acaricia a alma do leitor que admira a arte da escrita, a beleza do entendimento e a grandeza do autor
Muito já foi dito a respeito da obra do Machado de Assis; e todos os que se propuseram a dizer alguma coisa precisaram — uns por brilhantismo e outros por vaidade — recorrer lá no fundo dos seus conhecimentos. Escarafunchando as mais difíceis das expressões e a quase intermináveis pesquisas através do tempo na ânsia de declarar para o mundo quais os autores preferidos e escolhidos como modelos pelo romancista que escreveu com a alma, o que ele pôde tirar dela sem dilacerá-la.